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``Era um dia de Primavera como todos os outros´´

``Era um dia de Primavera como todos os outros´´ é o título de um conto premiado, de Mafalda Pereira , ilustrado por Joana Matos, alunas do 12ºH.

Era um dia de primavera como todos os outros, as nuvens pairavam no céu, movendo-se calmamente, o ar estava seco, ainda que se pudessem vislumbrar gotas de orvalho posadas nas pétalas das flores que tinham desabrochado há pouco tempo. A natureza movia-se muito lenta e harmoniosamente, ao contrário das pessoas da cidade, que corriam de um lado para o outro, sempre preocupadas com o dia de amanhã. O contraste entre estes dois mundos era bastante acentuado e sempre foi um assunto com que Carlos se fascinou. Desde pequeno que tinha uma mentalidade diferente da das outras crianças. Ele via o mundo com outros olhos, com os olhos de um sonhador, de um artista. Delineava todas as formas para que olhava, estudava as sombras provocadas pelas diferentes posições do sol e, escolhia, mentalmente, as cores que achava mais adequadas para colorir certas situações, sempre pintou a sua própria realidade. 

Todas as manhãs, no comboio que apanhava para ir para a escola superior de artes e espetáculos de Lisboa, analisava os passageiros, criava-lhes passados e sonhos, pintava à sua volta um mar de oportunidades, uma realidade hipotética feita à medida de cada pessoa. Essa realidade dependia não só do estado de espírito dos passageiros, mas também do seu. Se se sentisse zangado ou ansioso, o ambiente ficava repleto de rabiscos agressivos, vermelhos e pretos, com extremidades afiadas e imprevisíveis; quando ele se encontrava triste ou cansado, o ambiente criado para a rapariga sentada no lugar à sua frente era a preto e branco, com grafite desgastado e entristecedor. 

No entanto, naquele dia vulgar de primavera ele não foi para a estação de com boios. Decidiu apanhar um autocarro, que saía mais cedo, e parava perto de um café, a um quilómetro da sua Universidade. Instalou-se na esplanada, e à medida que se deliciava com um pastel de nata, acabado de sair do forno, apreciava todo o ambiente onde se encontrava. Mentalmente, associava a brisa do ar de primavera, que lhe acariciava a face, com um azul resplandecente e o som da massa folhada a quebrar-se ao mais ligeiro toque com um castanho matizado. Estudava a relação da paleta de cores do rio Tejo com os sons que este emitia ao embater nas margens. Passado algum tempo, começou 


a observar as pessoas e os seus comportamentos. O seu olhar prendeu-se numa rapariga, que se encontrava duas mesas à sua frente. Ela tinha o cabelo apanhado, desgrenhadamente, metade já se tinha recusado a permanecer atado, e a outra metade não tardava. Escorregava da mola a cada movimento de cabeça. Carlos perdeu-se no emaranhado de fios doirados de cabelo, conjugados com várias nuances de castanho. Quando o seu olhar desceu uns centímetros reparou nos olhos da rapariga. Eram grandes e azuis, da mesma cor do rio, no entanto, ao contrário da leviandade que a coloração do rio trazia, os seus olhos estavam vidrados e cansados. Foi apenas nesse momento que o rapaz afastou o seu olhar, vislumbrando-a no seu todo. Na sua mesa encontravam-se dezenas de livros de todos os tamanhos, cores e feitios. Muitos deles estavam pendurados em apenas metade da mesa, pois esta era pequena e tinha o es paço muito limitado. Os seus olhos, ausentes de qualquer expressão, passavam de um livro para o outro e na sua mão erguia um lápis, que ora estava a bater na sua perna, ora estava a escrevinhar num caderno de capa preta e mole. Estava vestida com umas calças de ganga azuis claras, uma blusa preta e um casaco fino verde tropa. Após deixar de olhar para a rapariga, olhou para si. Comparou a maneira como ambos estavam sentados, ela com os dois pés pressionados contra o chão e as costas encurvadas, e ele com uma perna elevada e encostado à cadeira onde se sentara. Comparou as suas roupas, as dela eram elegantes, mas genéricas, enquanto que ele trazia vestido umas calças largas de ganga amarelas, uma camisola cinzenta e um blusão azul, manchado de tinta de várias cores, pelos quadros que ele decidira pintar a meio da noite. 

Carlos desorientou-se, quando, num movimento rebuscado, a rapariga se levantou a começou a arrumar todo o seu material. Pegou num saco de pano que estava no chão, onde colocou metade dos seus livros, e levou a outra metade na mão. Foi neste momento que Carlos olhou para o seu relógio e reparou que tinha passado demasiado tempo no café. Levantou-se, pagou ao empregado e preparou-se para caminhar até à escola. 

Ao chegar à escola deparou-se com um alvoroço fora do normal. Toda a gente estava à entrada da sala de aula, a tentar ler qualquer coisa pendurada na porta. Chegou-se à frente, e num papel azul meio amolgado conseguiu ler “Neste último trimestre, 

os alunos da Escola de Artes vão trabalhar juntamente com os estudantes da Escola Superior de Medicina, para criarem o seu trabalho final de curso. Agradecia que todos se encaminhassem ao grande salão para receberem a restante informação”. No salão foi-lhes distribuída a devida informação e a cada aluno foi entregue um papel com o nome e o número de telefone do seu par, para o projeto, e o curso que este frequentava na escola vizinha. Rapidamente, Carlos recebeu uma mensagem de um número desconhecido com um local e uma hora, para se encontrarem durante a pausa de almoço. Depois de verificar que o número no ecrã do seu telemóvel era o mesmo que estava impresso na folha de papel que ele tinha dobrada na mão, guardou o contacto com o nome “Ana”. 

No intervalo de almoço, encontraram-se num parque perto de ambas as universidades. Carlos chegou antes da hora marcada e sentou-se num banco de pedra, esculpido grosseiramente. Retirou de dentro da sua sacola um caderno de desenho, no qual começou a rabiscar. Em apenas grafite, as árvores à sua volta começaram a ganhar vida no papel, desde as raízes, que serviam como assentos, de tão grandes e salientes que eram, até às folhas, no topo dos ramos, que atravessavam as nuvens. Em redor de todas as árvores, encontravam-se vários jovens, que ele ignorava na folha de papel, como se o seu olhar os filtrasse, para mais facilmente captar a beleza e fluidez da natureza. Passado algum tempo, ele tinha a página preenchida com um esboço do parque, não era um desenho perfeito e extremamente representativo do ambiente, mas sim um desenho expressivo, no qual estavam salientadas as características dos locais que ele mais apreciava, deixando a página desproporcional, mas única. Ao elevar o seu olhar do caderno, reparou que à sua frente estava uma cara familiar, deparou-se com o olhar azul vítreo da rapariga do café. Ele ficou fixado nos seus olhos, perplexo por a voltar a ver. Desta vez, o seu cabelo não estava apanhado com uma mola, mas sim solto, mostrando o quão longo e descontrolado era. Nuns locais, os fios de cabelo formavam cachos quase perfeitos, que se assemelhavam aos canhões que o mar formava junto à costa, noutros sítios o seu cabelo era quase tão liso quanto um mar sem ondas. Ela pousou os livros em cima da mesa, sentou-se e esticou a mão direita para se apresentar. Carlos olhou para a mão de Ana sem saber o que fazer, não estava habituado à formalidade de um aperto de mão com alguém da mesma idade que ele. Apertaram as mãos, apresentaram-se e Ana não perdeu um segundo para começar a planear o trabalho que iriam produzir no último trimestre de aulas. 

Ela era aluna na Universidade de Medicina e estava a fazer uma especialização em neurologia. Rapidamente sugeriu que poderia fazer uma tese baseada no comportamento neurológico de um estudante de artes. Carlos foi apanhado de surpresa, pois ainda não tinha pensado naquilo que ia fazer para a sua parte do projeto. Surgiu-lhe então a ideia de pintar a rapariga, numa tela de 140 por 70 cm. Ana não se mostrou entusiasmada com tal sugestão, a ideia de ficar parada durante horas para que ele a pintasse não lhe agradava, o horário dela não lho permitia. Retirou de dentro do seu saco uma agenda. Quando a abriu, Carlos reparou nas dezenas de papéis anexados às páginas cobertas de obrigações, nas imensas cores diferentes de sublinhadores que cobriam e delineavam testes, trabalhos, aulas e horas de estudo. Pegou numa caneta e, num canto de uma folha da semana a seguir, assinalou uma hora para eles se encontrarem novamente, depois das aulas, naquele mesmo sítio. Carlos, muito atrapalhado, segurou no lápis com o qual tinha estado a desenhar, e por baixo de uma raiz assinalou o dia, a hora e o local do seu próximo encontro. Com a rapidez com que se apresentaram, despediram-se. Ele ficou a olhar para Ana, a afastar-se, mentalmente, delineando-lhe a silhueta e cobrindo o ar à sua volta com grafite negra e carregada. 

Durante a noite, sentou-se à frente de uma tela e com um pincel aventurou-se, sem compromissos nem planos. Inicialmente, as suas obras desapontavam-no, afastavam-se demasiado daquilo que ele tinha idealizado, na sua mente. O produto final era sempre mais do que uma obra, era um encobrimento de erros que ele tinha cometido ao longo das horas, de pinceladas mal dadas, de cores mal escolhidas e empregadas e de linhas disformes. No entanto, no fim, tal não interessava. Ninguém ia julgar o seu trabalho pelo percurso que tinha tomado, nem pelos desvios que tinha feito, apenas pelo nível a que conseguira chegar e pelo propósito que o seu quadro servia. Ao se afastar uns passos, reparou num elemento peculiar no seu trabalho, com o qual nunca se tinha de parado. No meio da tela, estava uma figura humana, muito pequena, quase indistinguível. 




Em todo o seu redor, encontrava-se uma neblina, na qual a figura se perdia. A partir do canto superior direito uma mancha amarela tentava romper a obscuridade, sem efeito, era apenas irradiada para os restantes componentes do quadro. 

Ana levantava-se bastante cedo. Diariamente, descia as escadas do seu apartamento, juntamente com o seu saco repleto de livros e apontamentos, e encaminhava-se para o café, onde tomava o pequeno-almoço e estudava, antes de ir para a Universidade. As suas aulas eram longas e complexas. Tirava apontamentos, escrevia aqui e ali, num padrão que só ela conhecia. Organizava-se no meio da sua desorganização, era como navegar num labirinto que ela própria tinha construído. 

Na semana seguinte, depois das aulas acabarem, Carlos foi ao encontro da colega. Quando lá chegou, já Ana o esperava. Tinha dois manuais abertos, um caderno com as páginas em branco e outro com apontamentos e um lápis. Quando ele se sentou, foi assoberbado de perguntas, para as quais, por vezes, não tinha resposta. Questionou-o acerca da sua rotina, do seu horário, dos seus hábitos e preferências. Tais perguntas poderiam ter sido encaradas com uma certa leviandade, mas Carlos sentiu-se desconfortável, interrogado, consequente da impessoalidade com que Ana lhe colocava cada questão. Depois de tê-la visto preencher bastantes páginas do seu caderno com informação que ele não conseguia decifrar, propôs que fossem fazer uma pausa para lanchar num café ali perto. Reparando na expressão de desagrado da rapariga, completou a sua sugestão, sublinhando que para a poder desenhar, teria de a conhecer melhor, saber as normas pelas quais ela se guiava e aquilo que a fazia sentir-se completa. 

Após pedirem aquilo que queriam, Carlos retirou da sua sacola um bloco e um lápis. Muito descontraidamente perguntou-lhe sobre a sua família, posando o lápis, suavemente sobre a folha de papel. Enquanto ela lhe falava da sua relação com a mãe, ele delineava-lhe o corpo, sem muitos detalhes. Posteriormente deixava o lápis fluir pelos cabelos castanhos e doirados da jovem, que, segundo ela, se assemelhavam com os da mãe. Da cintura para baixo pouco se via, pois estava coberta pelos pés da mesa, por isso concentrou-se nas características faciais que caracterizavam a rapariga que, em frente dele se encontrava. Ao descrever as semelhanças que tinha com o seu pai, Ana referiu que ambos tinham um par de olhos enormes e azuis, que quando ela era pequena, o pai lhe costumava dizer que vislumbrava o mar através do seu olhar, que naquele imenso azul muitos navios se haviam naufragado, e muitos marinheiros haviam perdido o pé. Com esta memória na mente, tais olhos azuis de maresia brilharam, com tremenda felicidade, Carlos gravou este momento no seu papel. Pela primeira vez, desde que se tinham conhecido, ambos estavam a desfrutar do momento, sem promessas, nem preocupações. O esboço estava terminado, mas, aos olhos de Carlos, faltava algo, um mero pormenor que faria toda a diferença. Aquele breve instante foi bruscamente interrompido pelo apitar de um alarme de telemóvel. O tempo tinha acabado, a nova obrigação escrita na agenda de Ana não se iria realizar sozinha, ela tinha de ir. Despediram-se e prometeram encontrar-se no espaço de dois dias. 

Carlos dirigiu-se para casa como todos os dias fazia, de comboio. Mas desta vez, passou a viagem toda a pensar em Ana, na maneira com ela balançava a caneta na mão, ritmadamente, de um lado para o outro e na maneira como ela, quando se despercebia, cantarolava, criando melodias que ele nunca antes ouvira, e que lhe ressoavam repetidamente na cabeça. Através das características que ela lhe tinha dado da sua família, ele começou a desenhar a sua mãe e o seu pai. À mãe, deu-lhe uns olhos pequenos e generosos e cabelos longos. Desenhou o pai com um olhar alegre e sonhador, proveniente de dois grandes olhos, que coloriu com aguarela azul. Deu por si a ter de arrumar o seu material à pressa, pois o comboio estava a parar. Pela primeira vez, chegou a casa sem ter observado o ambiente à sua volta e sem ter reparado nas pessoas que lá se encontravam. Apenas guardava a rapariga de olhos azuis no seu pensamento. 

Passados dois dias, voltaram a encontrar-se no mesmo sítio. Desta vez, chegaram aproximadamente ao mesmo tempo. Cumprimentaram-se, e, sem mais demoras, Ana retirou um papel da sua mala. O documento era extenso e continha todos os dados pessoais que Carlos lhe tinha fornecido no último encontro. Retirou também da sacola várias folhas impressas com informação sobre diversos distúrbios mentais e psicológicos, para poder começar a eliminar possibilidades. Passadas umas horas começou a ficar escuro. Como era sexta-feira, Carlos sugeriu que fossem ambos para sua casa, dessa maneira ele poderia trabalhar no quadro com o devido material, durante o fim de semana. Uns momentos depois, encontraram-se na paragem de comboios. Ana trazia consigo uma mala com alguma roupa e uma mochila carregada de livros, cadernos e apontamentos, juntamente com o seu computador. Entraram na carruagem. 

Era de noite e o céu estava negro, no entanto, ao olhar para a rua conseguia-se ver uns focos de luz projetados no cimento, uma luminosidade natural, vinda do espaço, que rasgava a escuridão. Aos olhos de Carlos, a atmosfera noturna apresentava um per feito contraste entre a claridade e a obscuridade, um equilíbrio de cores e sentimentos, a esperança a brilhar no meio do desespero. Chegaram ao apartamento de Carlos. Rapidamente, Ana se apercebeu de que o ateliê do colega se estendia por toda a casa. As paredes estavam repletas de desenhos, esboços, testes de cor e telas de todas as cores e feitios. A sua sala de estar parecia uma galeria de arte, que nos transportava do frio intolerável do inverno, em tons azuis e acinzentados, até ao calor imenso do verão, cujos vermelhos e laranjas escaldantes queimavam a pele, sem sair do lugar. Ao caminhar pelos soalhos de mogno, tinha de se ter cuidado com o local onde se punha os pés, para não escorregar em tecidos ou estojos de tintas, que se encontravam espalhados. Ana estava boquiaberta, não sabia se devia olhar para os quadros, para as roupas feitas à mão ou para as esculturas, grandes e pequenas, na ponta da sala. Carlos olhava Ana, enquanto ela fazia o reconhecimento do espaço. Nesse instante, ele vira-se para ela, pega-lhe na mão e indica-lhe com um movimento suave de cabeça para o seguir. Saiu pela janela que se encontrava aberta, em direção a umas escadas exteriores. Ao seguir Carlos, deparou-se no topo das escadas com um terraço, onde estavam dois pufes e umas mantas. Daquele lugar, conseguia-se descortinar toda a cidade. As janelas dos prédios pareciam fazer padrões entre as luzes que se encontravam ligadas. As que não estavam acesas formavam figuras abstratas. 

À luz do luar, Ana parecia apenas uma sombra. Sentaram-se ambos à beira do terraço, e durante alguns instantes ficaram calados, a ouvir o silêncio, enquanto vislumbravam a beleza da noite cerrada. A certa altura, Carlos virou-se para o lado e deu por si novamente perdido nos fios de cabelo de Ana e nas reviravoltas que davam e nos olhos cor de maresia, que refletiam o céu estrelado. Naquele momento. o tempo pareceu parar, aquele instante poderia durar para sempre. As horas passaram, e o peso de um longo dia começou a sentir-se. As pálpebras de Ana começaram a tapar os seus olhos com mais intensidade e durante um maior período de tempo, até que ela perguntou a Carlos onde iria dormir. A mente do jovem artista, que estava perdida numa galáxia distante, nas infinitas estrelas no universo, desceu à terra e, consequentemente, levou a amiga para dentro. Disse-lhe que ela poderia dormir na sua cama, que ele ficava na sala. O cansaço da rapariga não lhe permitiu muito contestar tal proposta, por isso limitou-se a agradecer e a encaminhar-se para uma porta verde-esmeralda, ao fim do curto corredor. 

De madrugada, Ana acordou com o som de água a correr. Após se levantar da cama, dirigiu-se para a sala. Este local estava diferente, encontrava- -se mais apinhado, existiam esboços novos e o material estava mais desorganizado do que no dia anterior. Os boiões de tintas estavam abertos, as cores daqueles que tinham sido esvaziados encontravam-se dispersas por uma placa de madeira, onde três pincéis de tamanhos diferentes repousavam, aparentando terem sido utilizados há relativamente pouco tempo. Existia uma nova tela pousada num tripé de madeira lascada. Nela, estava pintada uma rapariga , de costas, com cabe los longos, soltos a esvoaçar com a pequena brisa na noite cerrada. A luz emanada pelo luar aclarava as pontas do seu cabelo e as curvas do seu corpo. O olhar de Ana desviou-se do quadro, quando a porta da casa de banho se abriu. De lá de dentro saiu Carlos, que tinha tomado banho, estava vestido com umas calças de ganga e uma t-shirt, e, na sua mão, trazia umas jardineiras manchadas com todas as cores que se encontravam no quadro em frente da rapariga. Ela tentou estudar, mentalmente, há quanto tempo é que o colega estaria acordado, para ter conseguido fazer tanto trabalho. Carlos disse que tinha de ir comprar algumas coisas para eles poderem comer ao pequeno-almoço, e material de pintura para que ele pudesse começar a trabalhar no projeto de final de ano. Ana decidiu ficar para trás, para poder fazer alguma pesquisa, e também para trabalhar na sua tese. Após a porta da rua se fechar, ela retirou o portátil de dentro da mochila e começou a pesquisar. Passado pouco tempo, o seu computador tinha dezenas de janelas abertas, desde sítios de hospitais e centros de saúde, a estudos de cientistas e teses universitárias. Fez uma pausa para fazer um reconhecimento geral da sala onde estava, quando a porta se abriu. Com um sorriso na cara, Carlos levantou o saco das compras acima da cabeça, para demonstrar que trazia comida, e anunciou a sua entrada em casa, como se de realeza se tratasse. Esta atitude desencadeou uma gargalhada de Ana. Pela primeira vez ele vira-a rir-se de uma situação que nada de especial tinha, um simples ato, despreocupado e deveras insignificante, proporcionou uma alegria imensa nos dois jovens. De dentro do saco, retiraram dois pães acabados de cozer. Estavam quentes e estaladiços, a manteiga barrada derretia imediatamente. Lá fora o dia estava solarengo, os raios da manhã de primavera entravam pelo apartamento dentro sem precisarem de ser convidados, e acariciavam as caras dos anfitriões. Para melhor os apreciar. decidiram ir de novo para o terraço. Subiram as escadas estreitas, que à luz do dia se tornaram vermelhas, e deixaram de parecer tão duvidosas, e deitaram-se nos pufes a olhar para o céu novamente. Enquanto apreciavam a mudança contínua de lugar e de forma das várias nuvens, Ana olhou para Carlos e começou a preocupar-se com pequenos detalhes em que antes nunca teria reparado, como as sardas que ele tinha no rosto, que começavam na cana do nariz e desciam até às maçãs do rosto, e como um fio de cabelo, mais comprido do que os restantes, se recusava a manter-se no mesmo local, caindo-lhe constantemente em cima dos olhos. Quando Carlos se apercebeu de que ela tinha estado a olhar para ele corou, e a sua face, que normalmente se assemelhava à areia branca da praia, tomou tons avermelhados. Olharam os dois mais uma vez para cima, e Ana precipitou-se a fazer uma pergunta que tinha estado no seu pensamento desde que tinha acordado com a água do chuveiro a correr. Ela queria saber há quantas horas é que ele estava acordado antes de ela se levantar. Muito repentinamente, Carlos endireitou-se, e, levando uma mão à parte de trás do pescoço, respondeu que não tinha adormecido, tinha passado a noite toda a desenhar e a experimentar técnicas novas. Para sua surpresa, Ana não pareceu surpreendida. Sem hesitar, olhou-o nos olhos e disse-lhe, convicta, que já tinha calculado, através das pinturas que tinham aparecido de um dia para o outro. Sem quebrar o contacto visual, passou a evidenciar uma expressão preocupada. Deduziu que tal lhe acontecia com regularidade, Carlos assentiu com um movimento ligeiro de cabeça. Ele sofria de uma desordem neurológica chamado síndrome das pernas inquietas, era causado pela sensação incontrolável de se movimentar, de não estar muito tempo parado, o que não era compatível com o sono. Ana sugeriu que marcassem uma consulta com um médico especialista que lhe recomendasse algo, para que ele pudesse descansar. Com um sorriso envergonhado nos lábios, referiu, com cara de gozo, que assim ela tinha algo de interessante para escrever na sua tese. Ficaram ambos num momento meigo, de silêncio, durante o qual apenas os pássaros que posavam nas árvores da rua se ouviam. 
Decidiram ir para um parque que não se encontrava muito longe do apartamento de Carlos. Desta maneira, ele poderia tirar algumas fotografias a Ana, para que estas servissem de referência para a pintar. Quando lá chegaram, Carlos começou a olhar em redor, com o intuito de encontrar o local ideal. Ao fundo do parque, avistou um canteiro de flores amarelas. Era um contraste cromático de vários tons de verde das folhas e caules, com diversos tons doirados. Aproximaram-se, e Carlos pediu a Ana que se deitasse no chão, e prosseguiu, com a câmara do seu telemóvel a experimentar ângulos diferentes. Tentou jogar com os diversos tons de cada pétala e com as cores presentes na cara da rapariga, principalmente com os seus olhos, que novamente brilhavam à luz do sol. A “sessão fotográfica” chegou ao fim. Nesse momento, Ana recebeu uma notificação vindo do telemóvel, que a relembrava que tinha de estudar para uma frequência na semana seguinte. Com os acontecimentos dos últimos dias, tinha-se esquecido completamente de tal responsabilidade. A sua face rapidamente recuperou um olhar e uma expressão que Carlos reconhecia, mas de que não gostava, a mesma falta de expressividade e excesso de preocupação que tinha no dia em que ele a vira pela primeira vez. 

Encaminharam-se para casa. Sendo o quarto de Carlos a única divisão onde Ana poderia estudar sozinha e sem distrações, ele ofereceu-se para a deixar trabalhar no seu território. A jovem, num ápice, pegou no computador e na sua mala e fechou-se no quarto. No último vislumbre que Carlos conseguiu ter, reparou que ela estava angustiada e ansiosa, que a inquietação lhe escorria pelo corpo, percorrendo todas as suas extremidades. . A mão com que ele a tinha visto fechar a porta estava a tremer sem interrupção. O rapaz passou algum tempo a perseguir a sua própria sombra, criada pelos raios de sol que, ao fim da tarde, ainda conseguiam entrar pela casa a dentro, de um lado para o outro, impune, sem saber o que fazer em prol de tal situação. Já tinha escurecido quando Carlos decidiu bater à porta do quarto. Não obteve qualquer resposta do interior, no entanto tomou a iniciativa de entrar. A cama estava repleta de papéis, em montes diferentes, post-its estavam espalhados e colados em cima dos livros e dos apontamentos, e os lápis e canetas que Ana tinha utilizado durante a tarde estavam emaranhados nos lençóis onde ela estava sentada. O seu olhar só se elevou dos manuais quando sentiu uma sensação de conforto no ombro direito. Carlos tinha-se aproximado, e, de momento, estava a tentar reconfortar Ana, que estava extremamente desorientada. A hora de jantar tinha passado, e a rapariga nada tinha comido, e nem sequer fome tinha demonstrado. O momento breve que tinham partilhado acabara e Ana voltara a olhar para as folhas cobertas de definições e imagens. Independentemente de nada perceber, relativamente à matéria que ela estuda va, Carlos deixou-se ficar no quarto. Sentou-se num cadeirão que se encontrava em frente da cama, e a sua companhia passou a preencher o espaço, tornando-o mais leve. Já passava da uma da manhã. Pela primeira vez Ana olhou para o relógio. Parou, deixando tudo o que estava nas suas mãos posar lentamente na superfície do colchão. Os seus olhos azuis começaram a olhar para o rapaz que tinha passado horas à sua frente, sem nada fazer a não ser proporcionar-lhe companhia. Sorriu, e com o cansaço evidenciado na cara. deixou-se cair em cima dos livros que atrás dela se encontravam. A sua mão não tinha parado de tremer. Levantou-se virou-se para Carlos e disse-lhe que naquele dia ele ia dormir, nem que fosse a última coisa que ela fizesse. 

Na rua, a brisa soprava, muito levemente, o ar estava abafado, era uma noite de primavera quente. Puxado pela mão, Carlos subiu as escadas e juntos foram para o terraço. Deitaram-se nos pufes, um ao lado do outro. Os olhos de Carlos estavam vidrados nas estrelas que se encontravam acima da sua cabeça. Sentiu uns braços, reconfortantes, entrelaçarem-no. Nesse momento, olhou para Ana, esta referiu que, quando um ser humano sente o aperto e o contacto de outro o seu batimento cardíaco abranda e juntamente com ele o seu sistema neurológico acalma-se. Ele retribuiu o abraço, e ficaram os dois, assim estendidos, em silêncio. Fazia muito tempo que Carlos não se sentia tão relaxado e aconchegado. Uma lágrima isolada escorreu pela sua face, um descarregar da pressão que há muito estava acumulada. As suas pálpebras tornaram-se pesadas, adormeceu. Quando Ana se apercebeu, as suas mãos pararam de tremer e esboçou um sorriso até que também foi vencida pelo cansaço. 

E lá ficaram os dois, pela calada da noite. Duas pessoas, que, por uns momentos, iriam permanecer em paz. Dois pequenos pontos num universo imenso, no meio de milhões de outros pontos, que se encontraram, e contra todas as probabilidades de compatibilidade, se completaram. Acharam o conforto nos braços um do outro. Dentro do apartamento ainda as luzes estavam ligadas. No meio da sala de estar encontrava-se um quadro. Este tinha pano de tela de três obras diferentes, todos com a mesma personagem caracterizada de diversas maneiras. À esquerda, encontrava-se uma pintura de uma rapariga envolvida por uma neblina, que a consumia e na qual desaparecia e, à direita, estava uma rapariga, de costas, no meio da noite, à luz do luar. Estas duas pinturas desembocavam num novo quadro, o de uma rapariga feliz, com um sorriso que iluminava todo um ambiente, uns olhos azuis que permitiam ao observador viajar pelos mares mais distantes e profundos e uns cabelos longos que lhe conferiam liberdade e jovialidade. Tudo desabrochava num ponto, na essência generosa e bela de uma rapariga inteligente, persistente e preocupada.  




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